quarta-feira, 24 de março de 2010

D i a g n ó s t i c o:

9º Prêmio Banco Real - Talentos da Maturidade
Autora: HELENA RODRIGUES ORTIZ


Use o tato, olhos fechados. Você já enxerga pouco, nunca enxergou muito bem, digamos
que nem sabe como são as coisas, de fato. Não será tão difícil, basta que se prepare,
treine, exercite os outros sentidos. Descobrirá possibilidades de corpo inteiro. Começando
pelo leque de significados do vocábulo. Formas se diluem, as cores esmorecem como a
tarde. A luz se esgarça e desaparece. A cada dia tudo estará menos visível e raro. Aí vem o
escuro. Não tema. No início era o escuro. Sem interruptores, nuances ou desmaios.
Demora um pouco, mas você vai conseguir. Vou pedir outros exames. Volte tão logo tenha
os resultados. Assim é que lá vou e já sinto falta da bengala que não uso. Logo serei.
Quando. Amanhã. Daqui a pouco. Poderei me guiar pelas sombras? Tudo escuro, ele
disse, sem nuances. Ainda lhe sobram tato, ouvido, boca e nariz. Uma apreciável maioria.
Ativará o sexto e quem sabe o sétimo. O sol? Você saberá com que intensidade ele está
irradiando. Sinta-o na pele e virão memórias quentes de cenários e horizontes. Todos os
horizontes objetos da arte pictórica, mais os que pôde ver em tela estarão reunidos num só,
no seu horizonte idealizado. Saberá ver um filme desde o momento em que apaga a luz no
cinema e se surpreenderá ao constatar que sabe mais idiomas do que pensava. Aprenderá
mais do que mostram imagens e legendas. A concentração será mais intensa e
harmonizada e então Bach Beethoven ou Mozart serão absolutamente admirados como se
fosse o ansiado céu.
O táxi? Tão fácil chamar o táxi amarelo. Vermelho branco ou preto. Sempre uma luz em
cima, súbito semáforo - sólido sinal. Apenas levantar o braço. E agora? Também, mas à
espera do olhar do motorista. Depois acomodar o corpo, só isso, ir embora sem muitos
traumas, sem bater tropeçar esforçar-se para saber. Onde descer? Levantar o braço
apenas e estar salva do trânsito sem vagões para o transporte das ovelhas. A pergunta se
impõe: como chamar o táxi? Pedir a alguém. Como pagar. Quanto dou. E o troco. Saberei
quanto? Estará me deixando no lugar exato? Tateio com a bengala antes do pé e sinto o
cheiro. Sim. No lugar certo. Dou-lhe uma nota e espero que seja honesto. Todos são. Seus
corações se confrangem. Pensam neles mesmos, que são motoristas e precisam ver. Eu
sou só uma passageira, mas também eles são meus passageiros. E então pensam um
pouco, de passagem, no cego. Nenhum deles é, mas nunca se sabe. Dão o troco certo por
pena de si, se o fossem, e um tanto de culpa. À rodoviária. Dinheiro no bolso de trás da
calça, ruídos convergentes conversas motores descargas aceleradores. Caminho na
direção dos guichês. Peço a passagem. Dinheiro e passagem, substantivos visualizados
mentalmente sensação mecânica sem esforço. Contato indolor. Duas peles distintas
celulose árvores distantes componentes químicos restos de mãos passadas aparentemente
a esmo contaminadas por suor e dúvida. Alisar, sentir a diferença e classificá-las por
textura peso e essência. Após classificá-las, inseri-las num plano maior de impermanências
e concluir: este pedaço de papel é o dinheiro este outro é a passagem. Decidir que a
passagem será guardada no bolso interno do casaco, lado esquerdo. E o dinheiro no bolso
de trás da calça. Plataforma 12. Lanchonetes frutas frituras jornais finalmente a rampa meu
corpo se inclina ao esforço indócil da travessia. É que sou gorda. Talvez alguns se
compadeçam mais da minha gordura do que da cegueira não me importo é o que pude ser
e tive apesar disso bons momentos. Agora é tarde para a estética, ainda tenho desejos,
mas viver deixou de ser uma luta. Nas retinas, o teclado permite certa contemplação para o
único. Os olhos abertos não vêem as palavras, mas a clareza delas se espraia pelos dedos,
pelos pulsos, impulsiona um exercício novo. Há de existir um poder maior do que este que
me conserva os dentes. E faz nascer uma samambaia onde vivia uma orquídea. Vivo a
história que um dia criei sem registrar. Chegou a hora, mas agora sem os artifícios. Há um
momento em que a vida é uma ordem. Branco papel palavras precisas. Vão-se os acentos
maiúsculas aspas travessões importa que escrevo e me entendes. O esforço não é mais
para as palavras, que elas chegam claras e ainda são acariciadas ao som do dicionário. O
esforço é a forma do registro. Hoje em dia você pode falar com o computador. Mas
acontece que eu não falo. Escrevo. Não errar a mão no teclado esperando que dê certo
sairá um dia a história da vida ad aeternitatem. Manter os dedos no teclado fechar os olhos
sem vestígio lembrar imagens para sempre na retina. Reter as cores recordar os traços. As
impressões do corpo guardam o arquivo das formas. F-1 a F-12, de Q a P, de A a Ç.
Cautela, prudência, tino. Como dizia o ensaio? A coisa dentro de mim que não tem nome.
Será essa coisa tão guardada escondida perpetrada durante tudo? Meus olhos não mais
me valerão, mas tenho gravados céu magnânimo, mar aberto e as impressões de todas as
folhosas vertigens. Ele bem me disse um dia: vá tateando, comece a tatear, reconheça
suas coisas, seus trajetos mínimos, daqui para lá passando pelo corredor. Identificar a
moldura dos quadros na parede. Disciplina. Inútil a lâmpada na cabeceira, inúteis todos os
interruptores. Uma coisa depois da outra. Tudo pensado, no início, depois automático.
Preparar café ir ao banheiro um cão quem sabe um cão (já tenho vários) um cão especial
que esteja junto e seja um guia. E a bengala? A bengala também, mas o cão será teu olhar.
Manter as coisas todas nos lugares não arredar portas não olhar chegar à janela onde mora
a antiga paisagem resistir ou não ao aceno de quem por acaso olhe.
Quem sabe acenar, como antes, quem sabe sentir a aragem do antigo movimento, quem
sabe ouvi-lo em despedida. É verdade que isso foi há 20 anos. Treinei durante todo esse
tempo, olhos fechados, e o diagnóstico médico não se confirmou. Sou muito mais por
dentro e aprendi: cautela, prudência, tino. Ainda enxergo, mas adquiri tanta prática que se
quero ser cega, sou.